Luciene de Oliveira Dias
2022
Arriscar-se na escrita do que é sentido e vivido cotidianamente é trazer para o mundo das letras o que a maior parte das pessoas chama de “realidade”. É de uma complexidade encantadora escrever uma realidade em fuga, uma realidade movediça, uma realidade aquilombada, uma realidade que se esconde em cada beco, em cada fresta que se abre, em cada brejo que se forma.
Na tentativa de me aquilombar também na escrita, mantenho profunda sintonia com a escritora brasileira Conceição Evaristo, que, em seu livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres, defende que é admirável que não tenhamos pudor ao contar as histórias, sejam elas reais ou inventadas. Considero a inventividade uma das principais características buscadas por quem pesquisa, haja vista a própria invenção humana e de suas categorias. Até o momento em que admito: a escrita é a realidade, sua transformação, sua amplificação, sua ampliação e, por vezes, sua redução.
Registro, nessas primeiras linhas, que minha intenção é amplificar e positivar. Escrever é um trabalho, é uma ação-movimento que fundamenta o que me foi passado pela oralidade e que sustenta o que será. Daí a relevância e o comprometimento de escritas empenhadas na construção de um mundo melhor. Esse livro-ação-movimento fundamenta, traz histórias que me foram contadas aos pedaços, de miúdo, no cotidiano tão generoso em fazer-se presente, aquilombado.
As linhas aqui esticadas trazem histórias que seguem, que passam, que têm corpo pulsante e insistente em incorporar a própria história que se move e foge, que se esconde nas frestas de pedregulhos, no brejo viscoso que provoca muitas adesões.
Também sob a inspiração de Conceição Evaristo, em No Meio do Caminho: Deslizantes Águas, estamos diante de um livro-água, que empresta palavras para dizer de não-ditos e busca operar uma eloquente transgressão narrativa.
Em um trabalho-ação, trago então algumas palavras-água que percorrem o quilombo Barra de Aroeira, no Tocantins, estado brasileiro criado a partir da Constituição de 1988 e instalado em 1989. Barra de Aroeira é um quilombo que ainda carece de ver suas terras integralmente tituladas, ressonâncias políticas, representatividade reconhecida e cuidados institucionais, mas que brota generosas porções de ciência, história, memória e sabedoria.
Ser quilombo e ser quilombola, por aqui, tem sentidos convergentes porque as pessoas imersas nessas histórias não se furtam em literalmente vestir a roupa do herói fundador, da mesma forma que mergulham no trabalhar-agir as terras de pertencimento e herança. “A terra tá aí pra ser trabalhada”, dignifica Manoel Pumbu a compreensão do que fundamenta a sua existência quilombola.
Disposta a contar essas histórias da Barra, eu, mulher preta e pesquisadora, fui ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) averiguar o processo, mas fui confundida com mais uma mulher quilombola – porque a negritude chega primeiro – e, consequentemente, a informação limitada chegou com um “você é filha de quem lá?”. Entendi que deveria seguir e passar, afinal transgredir, na literatura e na vida, é também perceber que “as águas passam, […] e as pedras ficam”. E foi no Incra do Tocantins que passei, ainda em 2008, por um relatório técnico que reduz arbitrariamente as terras do quilombo Barra de Aroeira diante do que foi delimitado originalmente, um saque histórico que traz precariedade para o viver quilombola.
Aguardo até o ano de 2021, especificamente o dia 3 de setembro, para ver a notícia de que esse percentual irrisório de terras é o que recebeu a titulação. Quantas histórias mais serão necessárias para que migalhas sejam garantidas?
Sigo e passo! A Barra segue seus passos, passo a passo.
Enquanto ação-água, a Barra conta suas histórias, e elas passam pelo caminho que leva dezenas de mulheres ao Brejo Grande todos os dias, outras dezenas aos quintais para as reuniões da Associação ou simplesmente para a coleta do caju e da manga. A história também passa pela Barra, que se junta para os festejos do santo de devoção. Os caminhos percorridos por esse povo já contam mais de 150 anos presentificados pela chegada, espalhamento, integração e construção cotidiana.
O quilombo já fazia parte do meu cotidiano, uma vez que morei em Palmas por mais de 12 anos e a capital tocantinense fica pertinho da Barra. Mas a convivência com o quilombo foi mais demorada por mim nos anos de 2008 e 2009, quando eu fazia pesquisa para um doutoramento. Já nos anos de 2020 e 2021, a Barra entra de novo na minha vida através de um aplicativo de mensagem, por ocasião da pandemia-sindemia de Covid-19 e pelo fato de ter parte de suas terras tituladas.
Acrescento que todas as fotografias aqui encontradas são de minha autoria e foram tomadas nos anos de 2008 e 2009. A capa e toda a ilustração do livro foram uma realização artística de Ralyanara Moreira Freire. Essa pesquisadora-antropóloga-estudante-costureira experimenta, com seus traços e grafias, caminhos possíveis para o autorreconhecimento.
Aquilombamo-nos para fazer melhor o que precisava ser feito. O que aquilomba Barra de Aroeira desde os seus primeiros momentos é a ancestralidade comum a Félix José Rodrigues, o herói fundador que lutou na Guerra do Paraguai, voltou vitorioso para o Brasil e recebeu como recompensa as terras hoje ocupadas por seu povo.
Destaco, como imagem criada por Ralyanara Freire, a farda do herói fundador da Barra, Félix. Em uma experimentação imaginativa, essa antropóloga dá corpo para roupa e reaviva o argumento de que o têxtil é também testemunho e documento – uma vez que compõe as histórias, as memórias, e o próprio tecido social brasileiro.
O livro completo Aquilombamento está disponível na aba “Manuscrito”, nesta plataforma.
Palavras-Chave: Quilombos; Tocantins; Posse da terra; Escrita; Imagens.
LEGENDA:
Félix – O Herói da Barra
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