Bordando um mapa: um experimento com linhas

Hellen Fonseca

2023

Esse experimento foi produzido com o intuito de traçar a rota marítima percorrida pelo músico e poeta pelotense Luiz Carlos Lessa Vinholes (1933 -), de 4 de julho a 7 de agosto de 1957. O navio Burajiru Maru zarpou do porto de Santos, cruzou o canal do Panamá, aportou em Los Angeles e chegou ao Japão após 33 longos dias no mar. A viagem marítima foi narrada por Vinholes em sua caderneta de viagem, onde registrou quase que diariamente a posição do navio e a velocidade da embarcação. Nela, há também o registro dos acontecimentos a bordo: as horas dedicadas ao estudo do nihongo e flauta; os filmes e documentários assistidos e reprisados para cobrir o ócio dos passageiros; marcos importantes da viagem, tal como a chegada ao Pacífico pelo Canal do Panamá; a agitação ou a calma do mar; as dores de cabeça e injeção a bordo; tartarugas e animais marítimos por ele avistados e narrados em forma de poesia. 

O processo de construção do mapa desse experimento nasce inevitavelmente de um incômodo cartográfico: como desenhar uma rota marítima entre o Brasil e Japão sem “naufragar no abismo” do Oceano Pacífico, isto é, onde finda o planisfério? Qual melhor modelo cartográfico para representar a rota, cuja centralidade não está no Atlântico, mas no Pacífico? É no processo de criação que, então, percebemos como nossas representações do mundo ainda se ancoram em percepções datadas do século XVI, quando da criação da projeção de Mercator – atualizada posteriormente nos séculos XIX e XX, mas ainda preponderante. Foi necessário, portanto, desmontar o mapa e ver o mundo ao contrário, de “ponta cabeça”. O modelo criado por Hajime Narukawa foi inspirado nos origamis japoneses e deve ser dobrado, conforme as instruções do desenvolvedor. Nesse experimento, não realizei dobraduras, mas utilizei a imagem do mapa planificado, uma vez que nele vemos o mundo sob outra perspectiva:

Imagem 1: Mapa de Hajime Narukawa. Disponível em: https://narukawa-lab.jp/archives/authagraph-map/

Após a ampliação e impressão em tamanho A2, o mapa foi desenhado em papel vegetal e, em seguida, transposto para o tecido de algodão cru. Para a pintura, foi utilizada a tinta aquarela cujo princípio se baseia na diluição do pigmento em água. A coloração dos continentes foi baseada na temperatura, de modo que lugares quentes receberam cores que variavam do amarelo ao laranja. O mesmo raciocínio também foi aplicado para os ambientes frios, cuja coloração variou entre azul e verde – a última também utilizada para colorir áreas de vegetação. Após a pintura, foi preciso aguardar o tecido “descansar”, o resultado desta etapa pode ser observado a seguir:

Imagem 2: fotografia do mapa colorido em aquarela

Por fim, foi iniciada a etapa mais longa do processo que consistiu no uso de diferentes técnicas de bordado livre para texturizar o mapa: pontos hastes para contornar áreas amplas e curvas; pintura em linha para colorir regiões menores ou lagoas; nó francês para áreas ainda mais diminutas. O resultado, bem como a tipologia dos pontos, pode ser observado na imagem abaixo:

Imagem 3: Tipologias de ponto e técnicas de bordado livre

Na etapa de finalização, as linhas das rotas foram adicionadas ao mapa. Aproveitei o experimento para representar não somente o percurso do navio Burajiru Maru, mas também o de outros objetos que caminharam com Vinholes em rotas terrestres e aéreas por mim desconhecidas. Para cada linha, havia uma dobradura: um barco de papel para imaginar o caminho do navio; um tsuru (pássaro japonês) para contar a história do caminho de um quadro; um chapéu para narrar a memória do último presente que Vinholes ganhou da família de seu grande amigo, Kenzo Tanaka. As duas últimas histórias, a do chapéu e a do quadro, serão narradas em uma próxima ocasião, bem como os desdobramentos da viagem de navio.

Finalizo contando o próprio fim que levou o mapa: dei-o de presente a Vinholes em julho de 2023 quando, finalmente, pude conhecê-lo pessoalmente. Trata-se de um singelo presente que materializava a minha experiência estética e poética com o mundo que pude conhecer através dele. O mapa é um experimento sensível com a pesquisa que também a ela se vincula – nesse novo modo de fazer antropologia, é possível ao pesquisador se utilizar de diferentes grafias ao ser afetado pelo campo. 

Imagem 4: Mapa finalizado

Palavras-chave: bordado; grafia; mapa