Daniela Feriani
2023
Eu acompanhava seu João em uma consulta no ambulatório de neurologia de um hospital universitário, junto com sua filha, Paula, a principal cuidadora, quando notei, na sala de espera, que ele olhava para baixo com muito interesse. Segui a direção de seu olhar. Ele percebeu o meu movimento e comentou: “Tem uns peixes aqui”. “Uns peixes?”, perguntei. “É, tem uns peixes nadando nos meus pés”.
Dentro do consultório, João ficou cabisbaixo enquanto a filha relatava o que estava acontecendo: os esquecimentos, a confusão, a mudança de comportamento. Quando o médico perguntou como ele estava, respondeu: “Eu tô em branco”.
Quando João fez 83 anos, fizemos um passeio na colônia de férias onde ele viveu e trabalhou por 14 anos como zelador: recebia os visitantes, explicava as regras, mantinha o lugar limpo e bonito. Havia uma expectativa em relação aos afetos e memórias que aquele lugar faria emergir. Será que ele lembraria de algo? O que sentiria ao pisar nessa terra outrora tão próxima?
O azul do céu parecia deixar as árvores mais verdes. Caminhávamos, rodeando toda aquela vastidão. O ritmo era lento, o calor era muito. Eu estava admirada pela boniteza do lugar. Espiava seu João. Queria poder olhar dentro dos olhos dele. Queria escutar o que o seu silêncio dizia. Foi então que um cachorro correndo me distraiu. “Olha, um touro!”, apontou João.
Seguimos. Não queria enchê-lo de perguntas do tipo “o senhor lembra desse lugar?” “onde nós estamos?” “o senhor já trabalhou aqui?” Evitei essa armadilha. O importante não era saber se ele, afinal, lembrava, mas como ele estava se sentindo, ali, naquele momento. Quando vi o rio, não me contive. “Olha, seu João, o rio!”, era eu, agora, que sinalizava algo. Ele pousou o olhar demoradamente no horizonte. “O rio tá cabeçudo”. E sorriu.
Após um breve descanso na testa do rio, continuamos até chegar nas casas, as mesmas acomodações de quando João ali viveu. Foi aí que Paula, a filha de João, apontou para uma delas. A casa onde João viveu com ela e a esposa. Os outros filhos já tinham se casado.
A casa estava abandonada, sem qualquer móvel, com as paredes descascadas e um leve cheiro de mofo. Passamos pelo primeiro cômodo, onde devia ser a sala, depois pela cozinha, pelo corredor e outro cômodo, que era o quarto de Paula. João seguia em silêncio, às vezes apalpando as paredes, como se examinasse suas condições precárias. Entramos no último cômodo. Percebi Paula mais atenta no pai. João coçou a cabeça, olhou pela janela, para o chão, para nós. “Aqui eu dormia”. Paula ficou com os olhos enormes, como se tivesse visto assombração, e exclamou: “isso mesmo, pai! Aqui era o seu quarto!”. “Ele lembrou! Ele lembrou!”, disse para mim. Mas acho que dizia para si mesma.
Na volta, entre os raios do sol e os raios dos olhos, João avistou algo na grama, debaixo de uma árvore. “Uma borboleta!”, apontou. Olhei e vi um brilho prateado. Paula quis ver mais de perto e foi até lá. Pegou o tal brilho e levou para João. “O que é isso, pai?” “Uma borboleta”. Colocou na mão dele. “É uma borboleta?” “É”.
Em outro passeio, fomos no sítio de um conhecido, e eu não conseguia controlar minha empolgação. Estava levando seu João pra ver uma roça, ele, que tanto já plantou, colheu, suou, carpiu, limpou.
O dia estava lindo. A chuva do dia anterior realçou os verdes das plantas, os vermelhos e marrons da terra, a ferrugem da enxada, os rosas, laranjas, brancos e amarelos dos animais, flores e frutas – a paleta da vida de seu João.
Ele deu comida para os peixes, cheirou as plantas, entrou na horta, pegou a terra – “Eu fico bonito quando pego a terra”. Deu dicas do que plantar, sentiu a enxada, apontou os animais.
Mas foi quando viu o trator que seus olhos ficaram enormes. “Eu vejo que meu pai está feliz quando a pupila fica dilatada”, Paula já tinha me dito. Se a palavra não saiu, a mão mostrou, chamou nossa atenção para aquele objeto tão pomposo. João foi até lá, conferiu a lataria, apalpou os pneus, apoiou-se, fez pose para a foto.
– O senhor já dirigiu um desse?, perguntei.
– Ô!
– Deve ser difícil, né?
– Não, é gostoso! Anda que nem casa.
João foi diagnosticado com doença de Alzheimer e conviveu com a enfermidade por 15 anos. Eu o conheci durante minha pesquisa de doutorado em Antropologia, em 2013, e, desde então, levei-o para passeios, conheci seus filhos, netos e bisnetos, acompanhei-o em consultas médicas, compartilhei almoços, bolos, cafés, risos, choros, dores e esperanças.
A fotomontagem aqui apresentada foi criada pelo designer e artista plástico Matheus Hass e faz parte do site www.soproseassombros.com.br, que reúne materiais de campo recolhidos ao longo de 10 anos de pesquisa com pessoas em processo demencial.
Palavras-chave: fotografia; montagem; demência; delírio
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