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Pindoba: Não existe ciência livre em corpos presos

Luciene Dias

2023

Ao teorizar, chegamos aos conceitos de diversas formas, algumas vezes pela nossa inserção em uma seletiva linhagem e muitas outras vezes pela dor. Um exercício de focalização extremada, nos aproximando da castidade performatizada por monjas ou um apego exacerbado por definições que pouco ou nada dizem sobre nossas vidas cotidianas são algumas das formas como acionamos nossa imaginação quando nos debruçamos à tarefa da teorização.

Mas a teorização que propomos no livro Pindoba: Não existe ciência livre em corpos presos gira especialmente em torno de um conceito forjado no fazer cotidiano e coletivo. O conceito de Pindoba está diretamente ligado à vida de grupos extrativistas dos estados do Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí, constituídos especialmente pela ação das mulheres quebradeiras de coco babaçu. Essas mulheres sempre agem coletivamente e esperançam o seu fazer cotidiano nas pindobas, palmeirinhas jovens de babaçu que tomam conta da terra devastada.

Os dicionários informam que Pindoba provém do tupi pim’dob e uma das principais lideranças do Bico do Papagaio, Raimunda Gomes da Silva (1940-2018), ensina que Pindoba é a vida mostrando que é mais forte que a morte. Interessante observar que a palavra Pindorama resulta da junção do tupi pin’dob – palmeira -, e orama – espetáculo -, o que pode ser traduzido como “espetáculo das palmeiras”.

É esse o chão que sustenta a criação, em março de 2011, do Pindoba – Grupo de Pesquisa em Narrativas da Diferença. O presente livro reúne produções dessas pessoas envolvidas com a construção de pertencimentos afirmados. O Pindoba mantém-se a partir de ações, pesquisas, acolhimento e estudos no sentido de fazer emergir vida plural a partir de corpos interseccionados por elementos de raça/etnia, classe, gênero, sexualidade, geração e outros marcadores sociais da diferença.

Nosso transitar passa por um espaço acadêmico ainda profundamente orientado pelo racismo, machismo, preconceitos e outras normatividades hegemônicas. Produzir ciência a partir dos atravessamentos que nos constituem, sem estratificar dores ou opressões e considerando especificidades contra hegemônicas, é o nosso grande desafio e esperança.

O livro Pindoba: Não existe ciência livre com corpos presos expressa os nossos primeiros brotos aglutinando pesquisas, estudos e apoios mútuos em níveis de graduação, mestrado e doutorado. Teorizamos a partir de nossas múltiplas experiências e o que nos agrupa são as nossas diferenças. Por isso, o livro reúne textos e imagens que, elaboradas por Ralyanara Freire, evidenciam em papel algodão diversos cortes, furos, errâncias, trilhas e pontuações sintetizando nossos atravessamentos.

Para além dos atravessamentos, o projeto artístico materializado nas imagens que compõem o ensaio visual do livro traz construções perfeitamente associadas ao tempo espiralar que subverte a própria existência, às encruzilhadas necessárias para que nos reorientemos e aos desvios fundamentais para dar continuidade à vida. Seguindo a paleta de cores que esverdeia o campo ocupado por Pindobas, o ensaio remete a enovelamentos para que construamos nossas comunidades de aprendizado.

Buscamos resgatar a indissociabilidade entre técnica, teoria, metodologia e escrita. As narrativas aqui publicadas são assinadas por quem busca acionar a memória pelo pertencimento atual, o que toca na experiência enquanto elemento fundamental para a elaboração do conhecimento. Desde a sua concepção enquanto grupo de pesquisa, o Pindoba provoca reflexões acerca da consolidação, fortalecimento e ampliação das políticas públicas, bem como o necessário e urgente acompanhamento de tudo isso.

Trata-se de uma publicação convergente para a proposta de que as identidades são sempre relacionais, políticas e, por isso mesmo, passíveis de elaboração e reelaboração cotidiana. Apostamos no avanço da discussão porque a alteridade que tem como orientação um Outro historicamente colocado como inferior não passa de uma estratégia colonizadora para que o eu hegemônico se mantenha nos espaços de produção de sentidos. Grupos racializados, etnicizados, gendrados, sexualizados e inferiorizados historicamente são os diferentes que ocupam o horizonte da mudança que começa com políticas afirmativas.

Nossas defesas passam pelo princípio freireano da tomada da palavra para que alcancemos a dialogicidade. Essa tomada da palavra conduz à transformação de um mundo que, invariavelmente, se complexifica e volta problematizado a quem o pronuncia. Tomar a palavra e pronunciar o mundo em que vivemos acarreta consequências que demandam acompanhamento e cuidado, sendo o que resume um movimento cotidiano e permanente.

A publicação lida com a ciência sem ignorar a sensibilidade e a estética – esse direito humano fundamental -, além de pensar sempre de forma propositiva, elaborando epistemologias sim, mas para a vida. A diferença trabalhada aqui apresenta distanciamento estratégico do vínculo com a noção de diversidade. Apostamos em uma pedagogia que celebre a diferença localizando-nos a partir de nossos atravessamentos. Como buscamos não trabalhar com conceitos isolados, agrupamo-nos e estabelecemos relações.

O reconhecimento e respeito pelas diferenças tende a oscilar entre a estabilização e a transgressão. Nesse sentido, ter uma publicação que reúne as diferenças é uma ação transgressora. Como diferentes grupos falam de pontos de vista diferentes, compartilhando o conhecimento situado, devemos admitir que há apenas uma parte aqui contemplada, o que nos impele a manter-nos enquanto grupo de pesquisa que deseja aglutinar as diferenças. A convivência traz à superfície pertencimentos diversos e, muitas vezes, não compreendidos.

Pessoas pertencentes a grupos subalternizados historicamente ingressam na universidade carregando vivências e conhecimentos até então tratados pelo universo de produção do conhecimento acadêmico como objetos. Muitas vezes, estes grupos dominam saberes que não são reconhecidos academicamente. Alcançar saberes e métodos outros é tarefa para quem se propõe pensar a diferença. Também por isso, a aposta no que convencionalmente é considerado novo faz parte do nosso trabalho cotidiano.

O livro completo – Pindoba: não existe ciência livre com corpos presos – está disponível na aba “Manuscrito”, nesta plataforma. 

Palavras-Chave: Diferença; Ciência; Narrativa; Pindoba; Resiliência Acadêmica.

LEGENDA: 

Textum VII

Ralyanara Freire, 2022