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A ruína da imagem: algumas linhas sobre uma fotografia em estado de desaparição

Rodrigo Frare Baroni

Este pequeno texto é um experimento, um devaneio por extenso elaborado por ocasião de uma tentativa de me aproximar de um conjunto de fotografias descartadas que compõe o projeto ACHO – Arquivo Coleções de Histórias Ordinárias. Dentro desse arquivo-coleção, oriundo da parceria de artistas e pesquisadores com catadores de materiais recicláveis da cidade de Campinas-SP, algumas imagens puídas e desbotadas me chamavam particularmente atenção, pois esse estado material parecia exprimir, para mim, algo referente ao próprio abandono dessas imagens. Elegi, portanto, uma dessas imagens para tentar pôr em palavras algumas das impressões inconclusas acerca do que essa fotografia me suscitava.

Palavras-chave: Fotografia; Esquecimento; Ruína


Uma fotografia parcialmente destruída pela “ação do tempo” e do abandono talvez possa servir aqui como uma imagem do encontro paradigmático com objetos em estado de decadência e decomposição, bem como para o próprio estatuto ambíguo e problemático de fotografias e outras imagens-órfãs. O processo da degradação material do suporte da imagem faz com que ela se transforme em uma metáfora para o esquecimento e o caráter destrutivo que este sugere para a experiência da perda da memória.

A criança, sentada sobre uma cadeira de balanço, desapareceu quase completamente. Dela, vemos apenas parte dos membros inferiores calçados com sapatos pretos e meias contrastivamente brancas. A posição do único braço visível, delicadamente apoiado sobre o da cadeira, parece criar a ilusão desse corpo estar entregue à sua própria decomposição. A ausência já completa de um rosto corrói a possibilidade de remissão a um nome ou identidade verificáveis, aos quais uma história ou uma narrativa biográfica poderiam se juntar para remendar os fios da imagem ao novelo da vida.

Frente à fotografia má conservada, não é mais somente a imagem do corpo que se decompõe, mas o próprio corpo, ali diante de nós, que parece cada vez mais distante. A associação entre desaparição e esquecimento conduz assim à associação entre esquecimento e morte.

Estes não são efeitos do ato fotográfico, nem são atributos diretos de nenhuma intencionalidade. Não é uma qualidade da composição da imagem, ou da pose, mas a própria deterioração de seu suporte o que lhe confere o estatuto de uma visibilidade paradoxal. Paradoxal porque põe em evidência a dialética entre transparência e opacidade que permeia as imagens e porque traz ao primeiro plano toda uma figuração do tempo. Mas qual é a temporalidade que a degradação do suporte da imagem institui? Não é mais somente aquela que apresenta ao observador os elementos de uma época, mas também aquela que o põe face ao tempo da derrelição. Estamos pois, face a dois regimes de figurabilidade temporais distintos, duas modalidades pelas quais o tempo se faz presente, se faz sentir, encarna-se através da imagem.

A “ruína” da imagem se dará, assim, como a ocasião de uma dupla perda, ou, ao menos, uma dupla separação. A primeira separação é aquela que produz uma distância entre o momento do ato fotográfico (a tomada) e a posterior visualização da imagem, a qual poderá vir acompanhada pelas sensações e emoções provocadas pelas distâncias espaciais e temporais que separam o observador do momento evocado e daqueles que ali figuravam. A segunda distância consiste, porém, naquela que resvala na perda (ou abandono) da própria imagem, situando-a em uma zona liminar onde seu estatuto é posto entre parênteses devido ao desvencilhamento da imagem de seus antigos guardiões. 

Nesta zona, o que desaparece não é só certa visibilidade da imagem que se desfigura, mas também todo um complexo feixe de relações que a dotavam de um particular modo de existência que, outrora, ocorria na presença de um sujeito, agora ausente. Não se vê mais um rosto, não se atribui mais à imagem um sujeito nem mesmo um predicado preciso, bem como não se pode remeter a imagem ao lugar que esta poderia ocupar na memória de quem as guardava. São, portanto, os dois elos de uma antiga ligação que agora se desfazem, o da imagem evocativa de uma lembrança e o de um suposto sujeito da recordação.