Lapsos |Ruídos | Sombras

De onde veio a jiboia?

Ana Maria de Niemeyer 

2025

Ana de Niemeyer, Biblioteca do Instituto Butantan e Serpentário. Aquarela s/papel, 25.5×0.77 cm., 2015. Foto: Carolina Mossin.

De onde veio a jiboia? I 

Para Martim, Sebastião e Valentim.

A estrada cruzava um longo trecho da floresta amazônica.

De noite, para passar o tempo, os caminhoneiros ouviam música.

De repente, os faróis iluminaram uma jiboia no meio da pista.

Pisaram nos freios, quase em cima dela.

Com cordas, conseguiram prender a jiboia.

Colocaram-na na caçamba do caminhão, junto com cargas que levavam para São Paulo.

O que fazer com ela?

Vamos levar para o Butantan! 

E lá foram eles estrada afora.

E a jiboia? 

Eu? Eu estava atrás de comida, atravessando um caminho novo no meio da mata.  Uns homens me jogaram numa caixa grande que rodava e andava fazendo barulho.  Nunca que eu saía de lá. De noite, pararam num posto de gasolina. Tentei escapar dali. Vi um tubo comprido: abocanhei aquilo. [Era a mangueira de encher pneu de caminhão…]

Fiquei cheia de ar, muito grande. Atravanquei a rua.

Vieram pessoas trazendo uma varinha com um gancho na ponta.  Não adiantou. Eu continuava ali na rua: enorme!

 Foi então que chegou um ônibus com crianças que iam visitar o Butantan.

 Um menino gritou: É uma bexiga gigante! 

 Pegou uma caneta e me furou. Deu certo. O ar saiu e fiquei do meu tamanho. 

 Aproveitei a confusão, fugi para dentro do Butantan.

 Vi um poço com companheiras jiboias lá dentro. 

 Entrei depressa ali. 

 UFA!!!

 

No dia seguinte, saiu em todas as manchetes da mídia escrita e televisiva, nacional e internacional: 

“Jiboia gigante fugiu do Butantan. Foi capturada pelo valente comandante do corpo de bombeiros que arriscou a vida salvando crianças que estavam prestes a serem comidas pelo bicho! ”

 

De onde veio a jiboia? II

 

De onde veio esta jiboia?  

Espanto e apreensão entre as jiboias do serpentário do Butantan. 

Ela vai comer a nossa comida! 

Deram o maior gelo na recém-chegada. 

Até que, um dia, olhando o serpentário, uma criança soletrou bem devagar as explicações sobre as jiboias: 

 “A    M    A    Z    O   N    I    A

O vento espalhou as letras:

A caiu entre as jararacas;

O entre as cascavéis;

M no meio das jiboias, e….

Z, I, N, voaram e entraram no Museu Biológico.

Grudaram na vitrine do sapo martelo… 

O sapo deu uns saltos no vidro, uns coaxados, e mandou as letras de volta para o serpentário.

Elas foram caindo por ali, multiplicadas. 

Foi uma chuva de letras.

As jararacas ficaram agitadas: A A A o que é isto? 

Logo descobriram: C A A T I N G A 

As cascavéis pegaram o O que estava por ali. 

O que fazer com ele?

A jiboia se arrastou e escreveu no chão:

A M A Z Ô N I A  

Só então suas companheiras chegaram perto dela e passaram a respeitá-la. 

 

De onde veio a jiboia? III

 

O menino sempre ia ao Butantan.

Um dia, no serpentário, ficou ligado em uma jiboia: já vi este bicho em algum lugar…   

Em casa, depois do jantar, seu pai lhe passou um recorte de jornal: Olha, filho, ainda existe gente corajosa em São Paulo.

O menino leu a notícia:   

“Jiboia gigante fugiu do Butantan. Foi capturada pelo valente comandante do corpo de bombeiros que arriscou a vida salvando crianças que estavam prestes a serem comidas pelo bicho! ”

 

Foi então que ele lembrou de tudo: o ônibus chegando perto do Butantan; as crianças assustadas com um bicho enorme no meio da rua; ele, sem medo, furando o que achou que era uma bexiga. 

Era uma jiboia então!

Não disse nada.

Quem iria acreditar nele?

No dia seguinte, foi de novo até o Butantan. 

Ficou ali no serpentário olhando e pensando o que fazer.

Um grupo de índios se aproximou. Estavam com uma professora que conversava na língua deles. Os índios olharam todas as cobras.

Parecia até que falavam com elas. 

Será? O menino ficou curioso. 

A professora explicou que eles eram Ashaninka do Acre. Contou um pouco sobre a cultura deles.

O menino pensou: Eles vão acreditar que fui eu quem salvou a jiboia. Vão sim! 

Foi então que tudo aconteceu.

Os Ashaninka ouviram a história do menino e lhe deram de presente um colar: o txoxiki, que representa a jiboia.  

Em casa, o menino guardou o colar em um local secreto. 

Muitos anos depois, no Instituto Butantan, via-se na mesa do Dr….  um colar de sementes pretas enroladas em muitas voltas. As pessoas perguntavam o que era aquilo. 

O Dr. deixava a resposta no ar!

 

 

Agradecimento: Alexander Precioso. 

Ana Maria de Niemeyer. Antropóloga e artista plástica. Aposentada do Departamento de Antropologia da Unicamp. História e aquarela são fruto de visitas que fiz ao Instituto Butantan, em 2015.