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Formas de ler um arquivo

Gabriela Acerbi Pereira
2025

Certo dia, durante o desenvolvimento da escrita da minha tese de doutorado, minha Mãe de Santo olhou para mim de forma paciente e ao mesmo tempo apreensiva, fitou meus olhos com calma e disse: 

– Minha filha, para continuar isso que você está pretendendo fazer, você vai precisar preparar um copo de água com açúcar e uma vela branca. Deixe o copo e a vela acesa perto de você toda vez que for fazer isso, se não vai ser muito difícil continuar…

Após um minuto em silêncio buscando entender, perguntei a ela o motivo do copo de água com açúcar, já que a vela me parecia um pouco mais compreensível. Na sequência ela me respondeu: 

– É que você está mexendo com muita coisa dos Antigos. E são coisas muito tristes e difíceis de mexer. São duras demais. Para que essa tristeza não se torne tão grande, e para adoçar um pouco a amargura deles – esses mais velhos que já foram e que você está invocando com tantos papéis -, precisa adoçar um pouco tanta história de sofrimento. É só assim que você vai conseguir terminar o que precisa fazer.

Assim o fiz…

E foram quatro anos de intensa dedicação ao processo de pesquisa, aos relatos de família, memórias, fotografias e também aos arquivos institucionais. Inventários de família, cartas de alforria, processos de tutela, de translado, de compra e venda, anúncios criminais, registros de posse mas também registros de sonhos, intuições, milagres, promessas e rezas.

Escolhi esse conselho de Mãe Ana de Iansã para detalhar um pouco sobre essa pesquisa que foi iniciada muito antes da  minha entrada num programa de doutorado, mas que, com o acesso a esta maneira institucional de pesquisar, me trouxe quatro anos de dedicação financiada por uma bolsa CAPES ao território em que nasci e que sigo vivendo atualmente.

Há, sim, muitas formas de ler um arquivo.

Durante esse processo de pesquisa, foi preciso combinar fazeres para dar conta de um tema que, antes de tudo, se fez na ordem do espiritual.

No caso desta tese, tecida entre tantas velas e formas de lidar com experiências irreparáveis e também experiências de cura, eu e muitas mulheres mais velhas cocriamos um trabalho a partir da devoção e de muitas perspectivas sobre o que é o Sagrado. Investigamos de que maneira práticas geracionais de manutenção da saúde atravessam nosso território sul-mineiro, sob o ponto de vista da organização e manutenção das famílias, sob o ponto de vista espiritual, da perpetuação dos festejos tradicionais para São Benedito e da consulta aos Pretos Velhos. Dessa maneira, considerando as ações espirituais no contexto das trajetórias familiares, articulamos e registramos percepções e modos de fazer herdados dos antepassados, e em que medida esses modos podiam narrar as transformações históricas da cidade em que nascemos ou vivemos – Poços de Caldas – e também dos seus entornos vizinhos, de onde foi desmembrada entre os séculos XVIII e XIX.

A partir das narrativas vividas e das memórias compartilhadas pelas famílias devotas, juntamente com os acervos fotográficos de cada núcleo familiar, da consulta em documentação arquivística associada às Festas para São Benedito e Nossa Senhora do Rosário no século XIX e à população escravizada no território, bem como a partir da revisão bibliográfica acerca da estrutura escravista e o contexto do pós-abolição na região sul-mineira, costuramos experiências de devoção anteriores e atuais.

Tudo isso feito a partir de muitos copos de água adoçados.

Palavras-chave: arquivos; pretos velhos; água com açúcar

Fotografias: Acervo Pessoal Gabriela Acerbi Pereira. 

  1. Fotografia feita no Museu Histórico Geográfico de Poços de Caldas
  2. Fotografia feita no Museu Histórico Geográfico de Poços de Caldas
  3. Fotografia feita no Cartório de Registro Civil de Poços de Caldas.
  4. Fotografia feita no Museu Histórico Geográfico de Poços de Caldas.
  5. Fotografia feita na Casa de Cultura de Machado.