Traços | Ruídos | Vislumbres

Ruído

Tatiana Lotierzo

2024

Também as memórias, naquele céu distante, 
dissipam-se pouco a pouco
Do outro lado, entretanto, mais azul,
No fundo do céu vazio,
elas se erguem levemente
Os dias antigos são, ao que parece,
somente nuvens flutuando sobre um rio
– Tsunekichi Suzuki, Omoide

 

Essas fotos foram tiradas durante a pandemia de Covid-19. Em ambiente rarefeito, fui pega por refrações mediadas por superfícies transparentes – notadamente, lentes, vidros e sua capacidade de abrir diferentes modos de ver, estar, aproximar-se e se afastar daquilo que é visto; refazer relações no ambiente. Isso aconteceu quando percebi, por acaso, um potencial inesperado da câmera de um celular antigo para fazer fotos com ruído (eu queria o ruído). Tirei boa parte dessas fotos no carro, em movimento, com o vidro fechado, mas houve também imagens tiradas de janelas.

Certos dias de pandemia, tomada pelo medo e pela falta de conexão com vidas que se retraíam do outro lado do vidro, a angústia crescia na contramão da expansão que marcou minha pesquisa de campo (Lotierzo, 2019) no Vale de Sibundoy, Colômbia, lugar onde o céu infinito se abre em inúmeros caminhos de montanha e floresta. As fotos tornam-se, assim, uma maneira de lidar com algo que recebi de meus amigos – mamita Merceditas Tisoy de Jacanamijoy, Uaira Uaua, Kindi Llajtu, Carlos Jacanamijoy, Rosa Tisoy, Tirsa Chindoy e Nestor Jacanamijoy e tantas pessoas que me acolheram ali.

Quando fui ao Vale, viajava muito entre Brasília, Goiânia, São Paulo e Bogotá, cidades diferentes entre si, mas que já se tornavam, bem antes de 2020, nítidos territórios-sintoma do problema que a Covid-19 escancarou: repartições envidraçadas que quebram, desmontam o corpo e distribuem fragmentos, ou os enterram atrás de inúmeras telas desconexas. Na pandemia, transeuntes diminutos e manchas difusas de cores e luzes da cidade voltavam com força e doíam nos órgãos contraídos, como se pudessem expelir seu interior para fora em um único movimento. 

A imagem das cidades adoecidas adensou-se quando li o ensaio Piração, de Sandra Benites (2020), escrito durante a pandemia de Covid-19. Ela dizia que “mba’e hasy, mba’asy, coisa que dói ou doença, aparece no corpo quando já está no último estágio. […] Depois que os corpos já estão penalizados, castigados, esquartejados e amputados do espírito, é difícil ressuscitarem ou criarem armaduras para que não desmontem facilmente. O corpo desmontado dificilmente saberá se reerguer”

Quis rejeitar a pulverização e o estilhaço do isolamento. Então, tinha comigo aprendizagens com meus amigos sobre o espaço e como aquilo que parece uma quebra ou fratura se torna uma dobra ou infiltração, um canal ou caminho por onde perpetuar a existência. Foi com eles que passei a vislumbrar a vida em outras pachas – esses sóis com luminosidade própria. Em sóis diferentes, haveria mundos diferentes, com gente diferente. Pacha seria uma “claridade” (sut’i), um “agora” (kunan) ou um “verdadeiro” (chiqaq). “No momento imediato, vê-se claramente e verdadeiramente. Numa pacha diferente, haveria luz diferente e veríamos diferentemente” (Allen, 2015, p. 27). 

Neste ensaio, procurei captar uma sensação no corpo, como onda vibrátil, e refratar, compor padrões de interferência (Haraway, 1997; Barad, 2007), ampliando meu alcance através das vidraças, em diferentes visões. As refrações seriam esses canais luminosos por onde olhar, estar, restar. Recusei tomar o corpo como dado – desmontável –, deixando-me ver pela recomposição e desvio em diferentes dimensões. A refração é difusa e faz retomar o mundo – outros sóis –, mas também uma existência não individual, encerrada, isolada: ter a vida menos vulnerável ao desmonte e ao descarte. Deixo-me desviar, recuar, recompor, refazer e coexistir. Assim, as imagens que fiz na pandemia também resvalam em sonhos – como ver que as nuvens no céu deslizam sobre um rio e correm para longe.

 

Flor de um dia

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

O yagé e certas plantas visionárias dão “filmes” (Peter Gow, 1995), nos quais todas imagens já recebidas passam em alta velocidade; dão também grafismos. Ocupa-me um pensamento do grafismo como refração – uma sorte de vão preciso por onde a luz pode passar e se desviar, formando diferentes desenhos, cores e caminhos – “os padrões de interferência sobre os filmes em gravação de nossas vidas e corpos” (Haraway, 1997).

 

Dourada

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

Carlos Jacanamijoy recorda que, quando era criança, seus pais e irmãos partiram para a Venezuela. Todas as noites, do alto de uma montanha, o menino ficava olhando os caminhões que passavam na estrada, uma longa espera pelo próximo a chegar. Os faróis amarelos iam e vinham, um a um, e ele restava horas esperando que seus pais estivessem num desses veículos – voltariam? Entre amarelos em seus quadros, um deles guarda a tristeza dessas noites sentidas na passagem dos faróis. Pensei nesse relato ao perceber a refração de tons quentes na janela do carro, no escuro dos temporais da pandemia, sem saber ao certo que horas seriam. A angústia vinha amarela e reluzia em pingos no vidro. Eu olhava e os tinha comigo.

 

Anil

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

Diz Uaira Uaua que algumas cores dão a mesma palavra. Eu perguntava sobre killu, que pode ser amarelo, alaranjado claro, verde e azul, embora certos termos carreguem a imagem do matiz nomeado: ishpashina killu seria amarelo; pankashina killu, verde; e silushina killu, azul. Amsanlla killu seria amarelo claro, verde claro e azul meio escuro. Já Amsa é palavra usada tanto para a hora da penumbra, pouco antes do nascer do sol, quanto para o crepúsculo. Essa palavra, em si, refere-se a escuro, sombra, lusco-fusco. Assim também são as pessoas: ter uma cor seria como ter um tempo e suas transformações. Da janela, veio o anil. Uma a uma, as gotas da chuva cobriam o vidro, colidiam e formavam nódulos logo desfeitos, escorrendo para os limites da moldura. O azul profundo e luminoso tinha aroma de árvores e seus vapores que o vidro, tristemente bloqueava. 

 

Rio

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2020.


As luzes de Natal prestavam a ondas de um rio pontilhado de brilho noturno. Hoje vejo na foto uma espécie de aparição do grafismo inga que se traduz como tempo – kutij, em formato de onda. Esse tempo é como uma vaga que se refrata na pergunta: – Quem ou o que regressa? O tempo, diz Uaira Uaua, pode ser medido pela distância entre a partida e a chegada dos seres que importam. Inquieto-me um pouco, entre as voltas incertas que pairam na ausência.

 

Outro Sol 

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

“Olhos que divagam vigilantes/pelos caminhos de nosso território/alumbrando como minacuros”, como diz o poema de Hugo Jamioy Juagibioy. Esta é a palavra kamëntsá para ninakuru – em inga, vaga-lume (lesma de fogo). São seres que perambulam e vigiam, feito desenhos candentes que abrem outros tempos; alumbram os caminhos dos maiores. Mais um dia e a chuva, tornando o vidro permeável a esses olhos radiantes, com os quais eu busquei sentir, por um momento, o calor de outro sol. Tive comigo a visão do ninakuru – um olho que voa, germina e cresce, decompondo-se em refrações de vida. 

 

Semear

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

Quem serão essas pessoas que vejo pequenas interferências em meio a árvores e casas? A terra é povoada, ainda que seus habitantes pareçam desimportantes. Juntos, são como grãos de milho no asfalto, que outras aves vêm devorar. Mas a refração tem um grafismo de hastes afiadas que sulca a terra – pelo menos, na marcação precisa dos espaços da foto. Penso num jogo de semear: muyu, em ingá: semente e olho; achar, pois, olhos-muyu nesse chão arado.

 

Poeira

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

A poeira acumula-se rápido nos dias mais secos, tornando-se multicor, refratada em pequenas iridescências refratoras que se refazem juntas em muitas composições. Na casa de minha mãe, alguém deixou uma mão sobre o vidro – quando? A visão da poeira ao pôr do sol fazia pensar em alguns quadros que dão pegadas para seguir e quis então fotografar aquela imagem; havia ali muitos caminhos. Tirsa Chindoy ensinou-me que as casas guardam alentos (samai) de seus donos e vêm abaixo sem alguém capaz de cultivar esse alento. Numa tarde silenciosa, ao pôr do sol, quis guardar um pedaço daquela casa. Então mexi devagar na poeira suspensa com as mãos e fotografei a janela, deixando-me agarrar por aquele alento e suas refrações (ultrasônicas).

 

Noite

Tatiana Lotierzo, São Paulo, 2021.

 

Cada lâmpada guarda seus vultos. Já nem sei mais quando terminou a pandemia, ou se já conseguimos escapar. Respiro sob a máscara e a tiro devagar




Referências

ALLEN, Catherine J. The Whole World Is Watching: New Perspectives on Andean Animism. In: Tamara L. Bray (ed.). The Archaeology of Wak’as: Explorations of the Sacred in the Pre-Columbian Andes. Colorado: University Press of Colorado, 2015.

BARAD, K. Meeting the universe halfway: Quantum physics and the entanglement of matter and meaning. Durham: Duke University Press, 2007.

 

BENITES, Sandra. Piração. Corpos que Falam: um lugar para as vozes de estudantes de pós-graduação em quarentena, 27 jun. 2020. Disponível em: https://corposquefalam.weebly.com/escritas/archives/06-2020. Acesso em: 13 nov. 2023.

GOW, Peter. Cinema da Floresta: Filme, Alucinação e Sonho na Amazônia Peruana. Revista de Antropologia, v. 38, n. 2, 1995, p. 37-54. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111558. Acesso em: 13 nov. 2023.

HARAWAY, Donna. Modest_witness@second_millenium. Femaleman©_meets_OncomouseTM: Feminism and technoscience. Londres: Routledge, 1997.

JUAGIBIOY, Hugo Jamioy. Espiritëng/Espíritos. In: Bínÿbe oboyejuayëng/Danzantes del viento. Bogotá, Ministerio de Cultura, 2010, p. 38-39.

LOTIERZO, Tatiana. Erosão num pedaço de papel. Tese (Doutorado em Antropologia) – Brasília, Universidade de Brasília, 2019.